quarta-feira, 12 de abril de 2017

Ponto de mutação

Por Tiago Navarro

É chegado o dia da grande queima do Judas. Tradição antiga, que ainda perdura na atualidade. Um ritual grotesco e primitivo, que não enaltece nenhuma qualidade objetiva do ser humano, apenas, o desprezo por si mesmo.

Muitos defensores desse folclore alegam que se faz necessário condenar o traidor. Traição essa cometida há quase 2 milênios. Mas a sua pena se arrasta até hoje. Será que não já está na hora de prescrever essa pena?

No Antigo Testamento havia uma punição dessa monta: Porque sete vezes Caim será castigado; mas Lameque[i] setenta vezes sete[ii]-[iii]; onde as pessoas que não seguiam as normais sociais, praticavam atos ou atitudes dissonantes das normas vigentes eram castigados. Também percebemos punições que se arrastam por gerações seguintes, no caso especifico do pecado original[iv] – seriamos punidos eternamente pela escolha feita por Adão e Eva[v]-[vi]-[vii]. Da mesma forma que fazemos com Judas, essa postura mental já não se comporta ao estágio em que nos encontramos.

É tempo de responsabilizar em vez de punir. Quem se enquadra na condição de ter violado nossos padrões morais precisa ser responsabilizado por suas ações ou atitudes, diferente do que antes era feito, punir um grupo ou sociedade pelo ato/atitude de um.

Judas já foi responsabilizado, já cumpriu sua sentença na "corte ética", e toda e qualquer punição posterior só tem justificativa na projeção inconsciente, temos um desejo enraizado de julgar, condenar e não permitir que o outro se liberte dessa condição.

Certa vez, um compositor retratou o desejo de punição à adúltera do evangelho, e seu refrão se fez célebre, "joga pedra na Gení"[viii]. Na música ela era o "párea social", não tinha nenhuma serventia social digna, todos a usavam para aliviarem as suas necessidades existenciais, porém, quando se viram em apuros, e o código de conduta moral daquela sociedade estava a ruir, Gení surgiu como a santa redentora de todos; mas em sua ética, Gení não se permitiu corromper daquela forma vil, e mais uma vez, ela voltou a ser execrada. Somos convidados diariamente a assumir essa postura dos purificadores da "moral e bons costumes", e punir severamente todo indivíduo que reflita a nossa hipocrisia.

Essa crença de que apenas o outro é "o (a) degenerado (a) filho (a) de Eva", só demonstra que nos enxergamos dessa forma. A nossa sombra "pecadora" se manifesta invariavelmente no convívio com o outro, e isso nos assusta muito, a ponto de querermos eliminar o outro, na busca da aceitação de nós mesmos. Nos odiamos, toda vez que vemos nossa fraqueza refletida no outro. Há muito se foi cantado que "Narciso acha feio o que não é espelho"[ix], uma reflexão válida dessa nossa ânsia em só enxergar o belo que há em nós.

Nesse período de renovação, de celebrar a vida, e o amor, busquemos perdoar os Judas e as Genís que temos em nós, e que carregamos essa culpa a tanto tempo, busquemos não mais trocar o nosso amor por valores materiais como o poder, que não busquemos a redenção de nossas condutas repreensíveis apenas, quando nos for conveniente, e descartar os "páreas sociais" quando estes não nos servir mais.



[i] Lameque é um personagem bíblico do Antigo Testamento mencionado no livro de Gênesis como filho de Metusael e um dos descendentes de Caim da quinta geração deste, que teria cometido o segundo homicídio, que seria duplo:

Gênesis 4:23 - “E disse Lameque a suas mulheres Ada e Zilá: Ouvi a minha voz; vós, mulheres de Lameque, escutai as minhas palavras; porque eu matei um homem por me ferir, e um jovem por me pisar “
[ii] Gênesis 4:24;
[iii] Em Mateus 18:21-22, Jesus apresenta o ensinamento que é a antítese a essa passagem:
“Então, Pedro, aproximando-se dele, disse: Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus lhe disse: Não te digo que até sete, mas até setenta vezes sete. ”;          
[iv] Gênesis 3:11-24;
[v]  Salmos 51;
[vi] Romanos 5:12-21;
[vii] 1 Coríntios 15:22;
[viii] Chico Buarque – Gení e o Zepelim; do álbum “Opera do Malandro”, lançado em 1979;
[ix  Caetano Veloso – Sampa; do álbum “Muito - Dentro da Estrela Azulada”, lançado em 1978.

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