quinta-feira, 10 de novembro de 2011

É impossível esquecer o Auto-de-Fé de Barcelona

Jávier Godinho
JORNAL DA MANHÃ
Há 150 anos - mais exatamente no dia 9/10/2011 -, 300 exemplares de O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns e O que é o Espiritismo, de Allan Kardec, enviados da França, foram confiscados na Espanha pelo arcebispo dom Antônio Palau Y Termenes e queimados em praça pública, no denominado Auto-de-Fé de Barcelona.
Auto-de-fé era uma coisa muito feia e triste, explosão de intolerância religiosa, que até hoje provoca atos de destruição e morte e guerras, principalmente no Oriente Médio. A enciclopédia ensina que por auto-de-fé se entendia a cerimônia pública em que se liam as sentenças da Inquisição, muitas vezes com a presença da realeza. Em geral, aconteciam na principal praça da cidade, com uma procissão prolongada, missa solene, juramento de obediência ao Tribunal do Santo Ofício, sermão e leitura das sentenças de condenação. Constituíam a maioria das vítimas os cristãos-novos apóstatas, alumbrados, acusados de bruxaria e de bigamia, e protestantes. A pena máxima que o inquisidor podia aplicar era de prisão perpétua. Pena de morte, quem impunha era a autoridade civil. Entre o primeiro auto-de-fé, realizado em Sevilha, na Espanha, em 1481, e o último, que teve lugar no México, em 1850, os penitenciados somaram dezenas de milhares. Somente em Lisboa, entre o primeiro, em 1540, e o último, em 1767, esse número ultrapassou 23 mil condenados.
O Auto-de-fé de Barcelona foi uma dessas violências históricas, cometidas por uma autoridade católica contra o Espiritismo, que então surgia, tomando-lhe indevidamente as primeiras obras e determinando sua queima no melhor estilo inquisitorial, mesmo já tendo a Inquisição terminado na Espanha em 1820.
Na manhã daquele dia, milhares de cidadãos de Barcelona, capital da província de Catalunha, afluíram à esplanada da cidade para assistir à incineração das três centenas de livros espíritas, importados da França. Dom Antônio Palau Y Termens mandou apreendê-los sob alegação de serem "imorais e contrários à fé católica".
Por volta de 10h30, surgiu um padre, vestido com paramentos especiais para ritos daquela espécie, trazendo numa das mãos uma cruz e, na outra, uma tocha. Cuidando do aspecto legal, acompanhavam-no um notário, espécie de assessor, encarregado de redigir a ata da cerimônia; um funcionário superior da administração aduaneira; três serventes, encarregados de manter aceso o fogo, e um agente da alfândega, representando o adquirente das publicações que seriam queimadas. Cumprindo os rituais da Igreja, o padre lançou a tocha sobre as pilhas de livros, encarregando-se os serventes de manterem acesa mais uma fogueira da Inquisição, oficialmente extinta na Espanha há 41 anos.
Um artista registrou a cena principal numa aquarela e, quando, finalmente, o fogo se apagou, a comitiva clerical se retirou, sob as vaias da multidão e os gritos de "abaixo a Inquisição!".
Os tribunais do Santo Ofício, durante seis séculos, perseguiram, apropriaram-se de propriedades e torturaram milhares de inocentes, os chamados hereges (aqueles que professam doutrina contrária a dogmas da Igreja), milhares dos quais foram queimados vivos, como aconteceu até a Joana D'Arc, heroína das Cruzadas, mais tarde considerada santa pela própria Igreja Católica.
O adquirente dos 300 exemplares era o renomado escritor e editor francês Maurice Lachâtre, autor da História dos Papas (10 volumes) e História da Inquisição. Ele estava refugiado em Barcelona, fugindo do regime absolutista de Napoleão III, que o condenara a cinco anos de prisão por haver editado o célebre Dicionário Universal Ilustrado.
Os exemplares de O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns e O que é o Espiritismo chegaram a Barcelona num lote juntamente com outros, todos devidamente comprados e pagos, sem direito a reembolso pelo proprietário. Enviados de Paris, haviam sido inspecionados na alfândega espanhola, cobrando-se do destinatário todos os tributos correspondentes.
O bispo Antônio Palau Y Termens era homem de ampla cultura, doutor em Teologia, catedrático do Seminário de Barcelona, cônego magistral de Tarragona e autor de várias obras religiosas. Ele alegou, para desapropriar e mandar destruir os livros espíritas:
"A Igreja Católica é Universal, e sendo esses livros contrários à moral e à fé católica, o governo não pode permitir que eles pervertam a moral e a religião dos outros países".
A propósito, o jornal La Carona publicou, à época, o seguinte:
"Os sinceros amigos da paz, do princípio de autoridade e da religião, se afligem com essas demonstrações reacionárias porque compreendem que às reações sucedem as revoluções. Os liberais sinceros se indignam de semelhantes espetáculos, dados por homens que não compreendem a religião sem a intolerância e querem impor como Maomé impunha o seu Alcorão".
Por sua vez, perdão é uma coisa muito bonita e feliz, nesse caso impondo o bom senso e a paciência sobre a intolerância e a arbitrariedade. Jesus, no seu momento supremo na cruz, não pediu ao Pai perdão para seus algozes?
Allan Kardec seguiu em frente, determinado e sereno, no seu trabalho, reconhecendo nessa agressão tão somente a reação de incomodados com a crescente aceitação da Doutrina Espírita ainda no seu dealbar. Não permitiu que se fossem à imprensa reclamar e aos tribunais exigir indenização. O edital de outubro da revista Reformador, da Federação Espírita Brasileira, é justamente sobre esse assunto e merece reflexão.
Perdoar é a expressão maior da caridade e se manifesta nas almas nobres, independentemente de crença religiosa.
A frase mais conhecida de Nelson Mandela, por exemplo, é um primor dessa virtude. Preso 28 anos por sua luta contra o apartheid - odioso domínio total da minoria branca sobre a imensa maioria negra -, ao ser eleito presidente da república, ele emocionou o mundo com a frase que proferiu, alusiva ao que sofrera e ao que faria no comando da África do Sul renovada para o bem: "Não posso esquecer, mas posso perdoar".

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